quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

EVENTO RELIGIOSO: RITOS DE PASSAGEM–ORIXÁS DAS ÁGUAS

 

Autora: Anaíza Vergolino Dias

A passagem de cada ano que termina para cada ano que se inicia marca, por todo o país, os festejos populares/religiosos dedicados à Yemanjá, ocasião em que as praias de todo o litoral brasileiro recebem milhares de fiéis que vão depositar suas oferendas e, em troca, fazer algum pedido àquela entidade.

Na cosmologia dos genericamente chamados cultos afro-brasileiros, onde também se pode incluir a Umbanda, a popular Yemanjá juntamente com as não menos populares Yansã, Ogum e Nanã compõem a série das “iyabás” que são orixás femininos das águas ou, ainda, a série das deusas que personalizam as águas do mar, dos lagos e dos rios, das chuvas e das tempestades. Isto porque, nas suas raízes africanas, os orixás são, em geral, personagens que representam as forças elementares da Natureza ou as atividades econômicas a que se entregavam os negros na região do rio Níger.

Yemanjá é a Mãe D’Água de origem yoruba que confluiu, no Brasil, com a crença das sereias de origem europeia e as iaras ameríndias. Na sequência dos paralelismos, Janaína é o nome que se dá a uma espécie de “Yemanjá brasileira”, enquanto que a Iara dos cultos ameríndios foi cada vez mais identificada com a “Mamãe Oxum” do continente africano.

Entre Ondinas, Boiunas e Sereias, surgem, a cada dia que passa, novas manifestações que, somadas às tradicionais divindades africanas, formam um panteon de entidades de características próprias, somente encontradas e cultuadas no Brasil. Hoje em dia à Mãe D’Água dos iorubanos dá-se, também, os nomes de Dona Janaína, Princesa do Mar, Princesa do Aiocá ou Arocá, Sereia, Sereia do Mar, Oloxum, Dona Maria, Rainha do Mar, Sereia Mucunã, Inaê, Marbô, Dandalunda. Ao mesmo tempo, pelo lado do sincretismo afro-católico, vamos encontrar Yemanjá sendo identificada com Nossa Senhora em várias invocações: Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora das Dores, sendo que a identificação de Yemanjá com Nossa Senhora da Conceição é, pelo menos atualmente, a identificação dominante. Por esta razão, a data festiva de Yemanjá também pode ser o 8 de dezembro e suas cores simbólicas, do mesmo modo que as de Nossa Senhora, são azul e branco, as cores do céu.

Tempo civil e tempo sagrado nos terreiros de Belém

Na tradição afro-brasileira de Belém, conhecida por “Mina Nagô” ou “Mina do Pará” entre seus adeptos, o final do ano é também a época de se homenagear as “iyabás”. No calendário “Mina Nagô”, dezembro é o mês das festas em homenagem à Yansã, Oxum e Yemanjá.

Yansã ou Inhansã, a primitiva divindade sudanesa (iorubá) das tempestades, porque se identifica com Santa Bárbara, é festejada a 4 de dezembro, dia em que se espera haver chuvas, trovoadas e relâmpagos. Conhecida nos candomblés e xangôs do Nordeste como Oyá ou pela corruptela “Aloiá”, nos terreiros de Mina de Belém ela recebe nomes alternativos tais como: Maria Barba, Rainha Barba, Barbassuera ou Barba Sueira. Não obstante ser um orixá associado às águas, Inhansã não é festejada nas orlas do mar ou dos rios e, sim, no interior dos terreiros.

Yemanjá, ao contrário, é cultuada tanto nas águas doces quanto nas praias de água salgada. As homenagens para Yemanjá são sempre feitas em procissões anuais cujas datas mais comuns são: 8 de dezembro (solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora ou simplesmente dia de Nossa Senhora da Conceição) e os dias que se seguem ao Natal – 26 a 31 de dezembro – os quais não têm nenhuma correspondência com os santos católicos. Por ocasião do ritual, cada terreiro costuma levar alguidares com “obrigações” (comidas sagradas) e “presentes” para a “deusa do mar”. Dentre esses, os mais comuns são flores (especialmente rosas), fitas de cores claras (o branco, o róseo e o azul), velas, bonecas e a série de artigos de toilette tais como pentes, perfumes, talcos, pó-de-arroz, sabonetes. Costuma-se incluir a imagem de Yemanjá em gesso. Não raro, médiuns do sexo feminino ofertam também seus vestidos de noiva para Yemanjá. Reunidos todos os presentes, uma lancha atravessa a barra e, muito longe, onde se supõem estarem as “águas profundas” do mar ou os “canais” dos rios, realiza-se a cerimônia das oferendas. Os demais médiuns que não participam da procissão ficam nas praias “aguentando os pontos”, isto é, entoando cânticos sem parar, até o retorno da lancha. Considera-se que o orixá “aceitou” a “obrigação” quando não há uma volta imediata do material às margens. O objetivo dessa oferenda é saudar a entidade, pedir sua proteção e paz. Todavia, o principal “fundamento” da cerimônia é o pedido de fartura para o Ano Novo, porque, de acordo com a crença, é do mar que se origina a maior parte da alimentação do homem.

Esse ciclo de festejos pode assumir um caráter individual, ser a iniciativa de cada terreiro, ou se fazer sob a forma de participação coletiva. Os rituais coletivos coordenados pela Federação Espírita Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará são realizados no dia 31 de dezembro nas praias de Salinas, em homenagem à Yemanjá. Muitos terreiros, no entanto, costumam homenagear Yemanjá, no mesmo período, porém nas “praias salobras” do Mosqueiro, onde somente se pode cultuar Iamin-Odó, uma espécie de Yemanjá que “navega naquelas águas”, isto é, que reina nas águas doces e salobras. Quando isto acontece, faz-se necessário “arriar” inicialmente uma “obrigação” para Oxum, com a finalidade de agradá-la e pedir sua permissão para se homenagear Yemanjá nas suas águas. Em se tratando de Mosqueiro, as praias mais apropriadas para o ritual estão localizadas na orla da Baía do Sol, destacando-se a praia do Marahu, porque se acredita que ali existe muita “mironga” (mistério), oriunda ainda do tempo da escravatura. Observa-se, assim, que, nas “águas do Pará”, a partilha Yemanjá = água salgada e Oxum = água doce não é rígida pois, na tradição da “Mina Paraense”, Yemanjá incorpora ou se sobrepõe como uma espécie de rainha de todas as águas, enquanto que Oxum se mantém como rainha específica das águas dos rios e demais águas doces.

Por que as águas? Ou o culto universal das águas?

Dentre os quatro elementos da Natureza, a água sempre foi considerada a expressão por excelência da vida e do movimento pelas diferentes culturas ocidentais e orientais. Entre os Vedas as águas recebem o nome de “mâtritamâh”, que quer dizer “as mais maternas”, pois, conforme essa tradição, no princípio tudo teria sido como um mar sem luz. Na Índia, se considera este elemento como mantenedor da vida que circula através de toda a Natureza sob a forma de chuva, de leite e de sangue. Ilimitadas e imortais, as águas são tidas como o princípio e o fim de todas as coisas da Terra. Para os chineses, todo ser vivente procede das águas. Desde muito cedo, quando se personificou a água, os rios e as fontes foram tidos como lugares sagrados. Na antiguidade clássica, gregos e romanos divinizavam os riachos, considerados como as moradas das ninfas. Pensada como fonte de toda a existência, o filósofo grego pré-socrático Tales de Mileto considerou a água como princípio de todas as coisas. Na antiguidade, a água foi ainda considerada como símbolo da ressurreição e da vida, já que, nos mitos gregos e romanos, a água aparece como o modo mágico mais usual da “catarsis”, do “lustratio”, onde a “água lustral” era a “água da purificação”. Entre os chamados “pagãos”, a “água viva” era sinônimo da juventude e da imortalidade enquanto que a “água mãe”, ou a água marinha ou salgada, era tida como símbolo da fecundidade.

Por causa de sua aparente carência de forma, em certas culturas antigas se distinguem as “águas superiores” das “inferiores”; as primeiras correspondem às possibilidades virtuais da criação, enquanto que as segundas correspondem àquilo que já é o determinado. Nas águas primordiais – imagens da protomatéria – se incluíam, também, os corpos sólidos ainda carentes de forma e rigidez. Posteriormente, os alquimistas chamariam de “água” para o mercúrio no primeiro estágio de sua transformação e, por analogia, falariam do “corpo fluídico” do homem.

Na Bíblia são extremamente frequentes as referências à água e numerosas são as locuções simbólicas nela encontradas: “água de fel”, sinônimo de amargura; “água furtiva”, símbolo dos prazeres proibidos; “água de expiação”; “água viva”, símbolo da graça e da vida sobrenatural. Na água tudo se dissolve, toda forma se desintegra, toda história se torna abolida; tais são as características da purificação pela água, na qual se baseia o batismo cristão. A água batismal como símbolo da purificação significa a eliminação do pecado e a elevação a uma vida nova. A água da chuva, ao purificar a Natureza fazendo-a renascer, se torna igualmente um símbolo da ressurreição. Como observa Mircea Eliade, as tradições do Dilúvio estão ligadas a uma reabsorção da humanidade pela água e a instauração de uma nova era e de uma nova humanidade. Relacionadas com a vida e com o simbolismo geral das águas, as chuvas e tempestades – domínios de Yansã – podem ser entendidas no seu evidente sentido de fertilização e, sobretudo, de purificação não só pelo seu valor como “substância universal”, mas pelo fato de que são águas que procedem do céu, do alto, símbolos da descida da influência celeste sobre a Terra.

No domínio da Psicologia, a água é interpretada como símbolo do inconsciente, da parte informal, dinâmica e feminina do espírito. Da água e do inconsciente universal, surge todo o ser vivente como se surgisse de uma mãe. Psicanalistas, como Jung, viram a água como um símbolo evidente da maternidade já que água e vida estão sempre associadas. A água é uma representação da energia psíquica, especialmente como força passiva e feminina a partir do que alguns psicanalistas consideram que sonhar com água é um símbolo materno, feminino, intrauterino.

A correlação entre água/elemento feminino/figura materna está muito presente na tradição do chamado catolicismo popular. Maria, Míriam é Stella Maris, Estrela-do-Mar, a protetora dos navegantes. Mas em plena Idade Média já vamos encontrar a mesma associação pois Câmara Cascudo registra que, na mais solene das orações dos Templários, Maria era invocada como Estrela-do-Mar: Marie, étoile des mers, conduis-nous au port du salut!

Nas “iyabás”, encontramos as mesmas representações maternas. No sincretismo afro-católico, Nanã, a “iyabá” mais velha, é identificada como Sant’Ana, mãe de Nossa Senhora, razão pela qual também é festejada a 26 de julho. Para os adeptos da Mina Nagô, ela é a mais velha das mães. É associada com a lama, com a mistura da água com a terra, o elemento pastoso, de onde teria se originado a vida. Quando comparada com Yemanjá, diz-se que Nanã seria uma espécie de agente universal das águas paradas, enquanto que Yemanjá seria o elemento dinâmico, o movimento. Assim, no desdobramento do simbolismo geral das águas feito pela cosmologia da Mina, vamos encontrar o surgimento da vida agora associado às águas paradas e aos remansos; diz-se, mesmo, que os peixes procuram as águas paradas e profundas para a sua desova.

Nesse jogo de desdobramentos e de correlações sincréticas, os “mineiros” terminam por ampliar, numericamente falando, as figuras maternas. Existem “mães” que reinam aqui na Terra – Nanã, Yemanjá, Oxum – como existem “mães” que reinam no Céu – Sant’Ana e as Nossas Senhoras. A todas elas se pode recorrer e pedir proteção nessa passagem do tempo e na chegada de mais um Ano Novo, um ano por certo de muitas esperanças mas, quem sabe, talvez de muitas incertezas.

Assinam em 27/12/1.987:

Anaíza Vergolino Henry – professora de Antropologia Cultural (UFPa);

Juvenal Maranhão Barbosa – Presidente da Federação Espírita Umbandistas e dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Pará;

Abílio Xavier de Farias – membro da Federação e redator do jornal “A Embanda”.

NOTA: Esta matéria foi uma tentativa pioneira de redação conjunta feita pelo pesquisador e pelo pesquisado/Objeto.

FONTE: Jornal O Liberal, edição de 27.12.1987.

MOSQUEIRANDO:

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O Festival de Yemanjá ocorre em Belém desde 1.971, quando a homenagem à Rainha do Mar aconteceu na praia do Cruzeiro, no Distrito de Icoaraci. Na década de 80, passou a ser realizado na ilha do Outeiro, mas voltou ao local de origem, no ano passado.

Com o decorrer dos anos, esse evento, que congrega milhares de pessoas, tornou-se a maior manifestação da Umbanda na Amazônia, sendo considerado Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Pará, por meio de decreto governamental publicado no Diário Oficial, no dia 19 de maio de 2.014.

Segundo a Mãe de Santo Kátia Hadad, o decreto concretiza o respeito à diversidade afro-religiosa:

"O povo de terreiro ainda é perseguido, e isso nada mais é do que racismo já que a intolerância é por ser uma religião de negros. Queremos mudar este estado das coisas: todos somos protegidos pela Constituição, que garante liberdade de fé.”

FONTES:

http://www.ormnews.com.br/noticia.asp?noticia_id=689533#.VHopmzHF8k4

http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2014/05/festa-de-iemanja-vira-patrimonio-cultural-imaterial-do-para.html

URL DA IMAGEM: http://www.orm.com.br/orm/sgportal/fotos/090314_iemanja_int.jpg

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