segunda-feira, 2 de abril de 2012

A ILHA CONTA SEUS CAUSOS: O JOVEM ADORMECIDO

 

Autor: Cândido Marinho Rocha

 

“No outro dia pela manhã, quando Rosamor chegou, o jovem não estava mais adormecido. Muito pálido, ainda na cama, começava a olhar ao redor, nitidamente assustado. Temendo algo que não estava ali. À tarde, Anacibe reanimou-se, bebeu caldo quente, sentou, conversou generalidades. Perguntou quanto tempo estivera adormecido, mas não acreditou senão quando olhou e viu a folhinha. Estava marcando quarta-feira e o “negócio” acontecera no sábado à noite.

-- Sim, senhor meu Deus, do que escapei!

E, alto, para todos ouvirem:

-- Quem me curou?

-- O Mário da Sétima Rua.

-- É verdade. E eu, que tanto depreciava dele.

-- Você não se lembra que ele curou também Mainha?

-- Mas Mainha estava doente, tinha febre. Eu estava morto.

-- Você sentiu-se morto?

-- Sim, mãe, morto, com um medo sem fim de voltar à vida.

-- Eu vi você dormitando, apenas soluçando, choramingando, pálido e sem ânimo. Seu pai disse que era peraltice e malandrice. Peralvilhices. E que não acreditava na sua doença. Tinha razão?

-- Tinha, eu não estive doente. Estive com medo, mãe, um pavor pânico.

-- Qual foi o motivo, meu filho?

Anacibe ficou calado. Mas em seguida disse:

-- Vou contar tudo. Foi assim:

No “sereno” da festa da Rosamor, vi uma bela morena que me olhava com ternura. Ora, eu estava mesmo procurando uma nova aventura. Como sabes, conheço todas as moças do Mosqueiro, mas aquela eu nunca vira. Estava bem vestidinha e cheirava a priprioca. Cheguei perto dela e dei boa noite. Ela respondeu nas faceirices, dengosamente. Vi que era possível a aventura. Fiquei ali ao lado, conversando. Perguntei se ia à festa? Disse que não. Que já ia pra casa. É longe? Indaguei. Não é perto nem longe. Quer ir comigo? Sim, foi sua alegre resposta. E seguimos de mãos dadas, pelo escuro das ruas. No meio do caminho, quis beijá-la.

-- Não, repetiu, na rua não. Vamos pra casa.

Fiquei intrigado, mas segui adiante. Depois de mais alguns passos, tentei de novo a abordagem.

-- Não, repetiu, na rua não. Em casa é melhor.

Está ouvindo, mãe?

-- Já estávamos na Quinta Rua, cada vez mais escuro e deserto e assim mesmo confiava na acolhida em casa da moça. E enlaçados já, caminhávamos.

Nessa altura, o jovem ficou silencioso por bastante tempo. Narração interrompida, a mãe também silenciosa. O moço em visões.

-- Deixe, filho, descanse. Depois você continua.

-- Não, tenho de acabar. Preciso dizer a alguém o que me aconteceu.

E assim falou:

-- Ao chegarmos à Sexta Rua, casas já sumindo, só capinzal e chão acidentado, quis recuar, mas a moça não concordou.

-- Já estamos pertinho, falou, voz macia e meiga. Vamos em frente.

-- Para não parecer medroso, aceitei o convite e continuei. Foi quando me pareceu que eu seria assaltado, maltratado e roubado. E disse a ela: “Olha, não deves fazer com que eu seja assaltado pelos teus companheiros porque estou armado e será pior para eles todos”. Ela parou, sorriu e me abraçou dizendo querido, querido, querido. Pelo que amoleci e fui adiante. Ao chegarmos na Sétima Rua, em cuja esquina fica o cemitério, as circunstâncias me pareceram normais, sem possibilidades de encontros perniciosos pois tudo era calma e silêncio. A noite escura, as estrelas belíssimas lá em cima. O sereno caía, havia umidade, um certo friozinho nas mãos. Um braço meu no grande oblíquo da garota, outro no grande peitoral. Uma felicidade generalizada nos nervos. Tudo era paz, promessas de amor. Sorria já do meu espanto impróprio. Ela mantinha suas mãos ocupadas também: uma no meu grande dorsal outra no bíceps. Era tudo uma serenidade.

-- Assim, mãe, continuou o moço, ia eu sendo levado quase sem saber para onde. Já nem pensava mais na casa dela, nem nada. Nada de pensamentos sujos. Tudo para mim era então limpo e romântico. Após estarmos um instante parados, abraçados, é que notei. Estávamos encostados ao portão do cemitério que, como sabes, permanece sempre aberto.

Então ela falou assim: “Entra, querido, entra, vem comigo, aqui é minha casa. Vês aquela pedra branca, ali é o meu leito. Vem comigo, querido”. E me segurava as duas mãos e me puxava para dentro daquela escuridão terrível. Pensei a princípio que fosse uma brincadeira, mas nada pude articular. Recusei-me a segui-la. Foi quando se desfez numa gargalhada e eu então compreendi que devia ser um fantasma. Apavorado, safei-me das suas mãos e corri até perder o fôlego. Não sei onde caí morto de medo e de cansaço. Foi assim que me encontraram, mãe?

-- Sim, filho. Você estava meio morto mesmo.”

(FONTE: MARINHO ROCHA, Cândido. “Ilha Capital Vila”- GRÁFICA FALANGOLA EDITORA. Belém-Pa, 1973- pp. 95, 96 e 97)

MOSQUEIRANDO: Conforme narrativa do autor, o fato se passa na noite de São João de 1931, época em que o bairro do Maracajá praticamente não existia, mas falava-se no Umarizal, nos limites do atual cemitério. Sendo assim, há um engano na localização do cenário, pois o referido cemitério fica situado entre a Quinta e Sexta Ruas e não na esquina da Sétima.

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