segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

JANELAS DO TEMPO: BRASILINO, UM HERÓI DO PASSADO

Autor: Cândido Marinho da Rocha

“Brasilino da Maria Capela detestava autoridade. Provava que, realmente, a verdade está no álcool, pois sempre que se encontrava embriagado investia contra Varela e Macaca Prenha. Deixou até de falar com o primo que aceitou emprego de vigilante noturno, alegando que passara a ser autoridade. Robusto, rosto largo, pavulagem permanente, leve nos saltos, capoeirista, bom de briga, o filho da Maria Capela era o ídolo da garotada. Figurava como Super-Homem, Rei das Selvas e Capitão Marvel, heróis infantis de todos os tempos. Conta-se que Brasilino tinha o hábito de, nas praias, andar de um lado para outro protegendo, disfarçadamente, as crianças que se banhavam. Muitas vezes jogava-se n’água para ir lá ao largo apanhar um garoto que se arriscava. Outras vezes punha-se a nadar na área líquida em que eles se divertiam, brincando também, jogando cangapés, mergulhando, plantando bananeira, fungando à flor d’água como boto, unicamente para os proteger. Era fiel aos pequenos admiradores. Quando o Almirante Alexandrino chegava, estava à cabeceira da ponte para carregar crianças no desembarque arriscado ou sob chuva. Naqueles tempos, os rapazinhos jogavam futebol, animadas peladas nas ruas, nas praças, nos quintais. Brasilino ia chegando, desconfiado, pedia para jogar, grandalhão e fuleiro, conhecido por todos.

-- Fica de goleiro, gritavam os meninos.

Lá ia ele defender entre traves simbólicas – pedras ou varas limitando a área do goleiro. Seu intento era ajudar, sempre. Defesas mesmo quase não praticava, mas tinha prazer em saltar muros e correr longe para apanhar a pelota quando um chute mais forte ou desorientado a retirasse do campo. Davam-lhe singelas alegrias os amiguinhos: presentes de roupas usadas dos pais, camisas de malha do seu clube, o Pedreira Esporte Clube, da Vila, cujas cores eram as mesmas do seu clube de Belém, o Paissandu. Entendiam-se. Brasilino dizia que seu nome era outro e que este era seu apelido.

-- Qual a razão do apelido?

-- Porque sou comilão.

-- Mas, qual é a relação entre comida e Brasilino?

-- É que no Hino Brasileiro há um ponto que diz: “Gigante pela própria natureza”, não é?

-- Sim, e depois?

-- Depois minha madrinha, a dona Quides, me chamou de Brasilino, desde jito.

E explicava encabulado:

-- Pois é, gigante come muito, não é? Por isso sou gigante pela própria natureza e, portanto, Brasilino. Entenderam?

Mas não gostava mesmo de autoridade. Abominava o princípio de tudo quanto era poder. As autoridades podiam fazer o que quisessem. Ele, não. As autoridades podiam mandar prender. Ele, não. As autoridades podiam mandar baixar o chanfalho. Ele, não. As autoridades podiam comer e beber sem pagar. Ele, não. As autoridades eram bem tratadas por todos. Ele, não. As autoridades impediam os meninos de jogar, apoderavam-se das bolas. Enfim, tinham poder, ele não. E resmungava:

-- Esse negócio de me mandarem fazer aquilo que eu não quero, não é bom. Rejeito, amigo Carlindo.

-- Mas autoridade existe sob muitos aspectos, Brasilino. Por exemplo: Não obedeces à autoridade dos teus pais?

-- Credo, rapaz, que comparação; até que eu gosto de ouvir um ralho dos velhos.

-- Mas há também a autoridade pública, que te protege, que te defende dos malfeitores e até contra doenças.

-- Ora vejam só. Isto é demais: Por Deus, rapaz. Eu sei me defender. Não preciso delas, rapaz.

-- E das autoridades que governam o povo? O governador, o presidente da República?

-- Ah! Dessas não quero saber, nem elas querem saber de mim, pois até nem sabem que eu existo.

-- Mas não há qualquer autoridade que possas aceitar?

-- Sim, duas. Uma, da minha namorada. Acho bonito quando me diz: “Agora se tu fores ao baile eu te deixo”. A outra, das crianças, da inocência, da bondade, bondade mesmo. Né?

-- É sim, Brasilino, tens razão. São duas importantes e magníficas autoridades: da mulher e da criança. Muito bem, Brasilino. Todos nós nos curvamos a elas.

-- Ainda bem que aceitas minhas razões.

Carlindo recebeu a lição de Brasilino com humildade. Deixou aquela beira de calçada, onde os dois se sentaram para conversar, pensando na singeleza da filosofia.

Brasilino, analfabeto, inimigo de imposições autoritárias, amigo da infância e das mulheres, reproduzia, sem saber, repetia Pascal na “Autoridade em Matéria da Filosofia”, demarcação de princípio da autoridade e seu domínio nos campos iluminados da razão.”

(FONTE: MARINHO ROCHA, Cândido. “Ilha Capital Vila”- GRÁFICA FALANGOLA EDITORA. Belém-Pa, 1973- pp. 151, 152 e 153)

 

MOSQUEIRANDO: BRASILINO realmente existiu e continua existindo na memória coletiva da ilha. Fomos encontrar seu neto, BRASILINO LUCAS RAMOS, que nos informou o verdadeiro sobrenome de sua bisavó: CANELA, registrado no livro como CAPELA. Varela e o Comissário de Polícia apelidado Macaca Prenha também são personagens reais na história da ilha. Se Brasilino vivesse em nossa época, qual seria o seu conceito de autoridade?

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