sexta-feira, 24 de setembro de 2010

JANELAS DO TEMPO: O JARDIM DA DISCÓRDIA

 

Era o ano de 1945. A Segunda Grande Guerra acabara e, no Brasil, o Estado Novo sucumbia consciente, com a ditadura de Vargas chegando ao fim. A ilha do Mosqueiro parecia adormecida em sua rotina de intenso bucolismo. Se o conflito mundial bem pouco abalara a calma do povo, o que dizer do início do pós-guerra noticiado pelos raros receptores de rádio ou pelas “folhas” que chegavam no Almirante Alexandrino, novidade que corria de boca a boca, trazendo um certo alívio para a população da Vila. A movimentação de guerra ficara por conta da presença dos soldados da Bateria Antiaérea aquartelados no atual Colégio das Irmãs e nos prédios municipais às proximidades, mas foi a escassez de alguns gêneros alimentícios que mexeu com os moradores do local. Na falta do açúcar, adoçava-se o café com o mel de cana comprado em pequenos e bojudos potes de barro. Para conseguir um quilo de carne de boi, era preciso correr o risco de tropeçar em cães e visagens nas noites escuras da Vila e madrugar em frente ao Mercado Municipal. O interessante é que os menos pacientes marcavam seus lugares na fila com paus e pedras e todos aceitavam: “De quem é essa pedra aí?” “É do Seu João!” “E aquele pau?” “Da Dona Maria!” “Não vá me dizer que aquele galho de mangueira é da Dona Raimunda?!” “Não é que é, seu menino!”. Ainda bem que não havia senhas nem venda de senhas naquela época e a vida seguia cordial e tranquila, parecendo que nada abalaria a paz habitual da ilha-paraiso. Foi aí que tudo aconteceu.

Em nossa paróquia havia dois padres. Se eram irmãos, não sei dizer. Parece que não, pois um era claro e o outro, moreno. O que sei é que eram alemães e tinham o mesmo sobrenome: FRANK. Padre Carlos, o mais acomodado, quase sempre de batina, ficava na igreja ”apascentando as ovelhas” dos arredores, enquanto Padre Eurico, em trajes comuns, metia-se na sua “voadeira” e, varando igarapés e furos de rio a rio, de baía a baía, buscava conquistar as almas simples das comunidades ribeirinhas mais distantes. Ambos desenvolviam um trabalho de catequese meritório e procuravam melhorar o templo dedicado a Nossa Senhora do Ó, antes uma humilde capela. Para angariar fundos, tinham criado o Teatro Paroquial e promoviam todos os anos a encenação do Drama da Paixão de Cristo, na Semana Santa, e as Pastorinhas durante as festas de São João. Também exibiam filmes com seu projetor doméstico. E o Salão, nos fundos da igreja, sempre ficava repleto de espectadores que aplaudiam entusiasmados.

Surgiu, então, a idéia de encenar uma peça inédita, escrita especialmente para aquele momento em que se buscava, no mundo todo, a restauração da PAZ entre os homens, após seis anos de sangrentas batalhas e milhões de mortes. Padre Carlos e a Professora Camila, prendada e incondicional auxiliar da paróquia, decidiram criar um cenário de conto de fadas, associando a beleza das flores à singela delicadeza de pequenos e inofensivos animais alados. Esse cenário de sonho encerraria a representação para sugerir a alegria da vida numa coexistência pacífica. Antes, apareceriam em cena bonecas de porcelana, bonitas e frágeis, para mostrar o desejo de paz das nações. Jovens adolescentes da comunidade viveriam no palco, além das bonecas, a borboleta, o vaga-lume, o besouro, o gafanhoto, cada qual devidamente caracterizado em seu engenhoso e bonito figurino. O padre e a professora não pouparam esforços na montagem da peça e nos ensaios do elenco, para que o público fosse realmente surpreendido pelo espetáculo. E que surpresa!

No dia da estréia, o Salão estava lotado. Os familiares dos jovens atores aguardavam ansiosos. Na frente, em cadeiras especiais, os convidados de honra: o Sub-Prefeito José Pedro e sua esposa Dona Amazonina.

Abrem-se as cortinas e começa o primeiro ato: Dona Benedita (Elza Fernandes Alvarez) e sua Trinca (meninos trajando vermelho e com rabinhos de diabos), todos pintados de carvão para simbolizar – acredito – os horrores da guerra. Foi um sucesso o desempenho dos atores. Vem o segundo ato e entra em cena, com aplausos efusivos do público, a boneca brasileira (Zilda dos Santos), que, sorridente, faz um elegante desfile. É... Mas o espetáculo real, senhores e senhoras, estava por vir! Adentra o palco toda feliz a boneca alemã (Raimunda Monteiro) e posta-se ao lado da boneca brasileira. Ouvem-se murmúrios estranhos da platéia e resmungos de desaprovação do Sub-Prefeito, que não gostou da ideia. Acendera-se o estopim. Na sequência, diante do olhar estupefato de todos, surge uma personagem oriental interpretada pela Maria José dos Anjos, portando desfraldada uma bandeira do Japão. Parecia que o próprio Imperador Hiroito estava devolvendo a Bomba de Hiroxima. Formou-se o quiproquó. O José Pedro, trabuco na mão apontando para o alto, gritava indignado: “Isso é uma afronta! Quem for brasileiro que me siga!”. E ordenava ao Comissário de Polícia: “Mendonça, prenda esses padres nazistas!”. E o Mendonça invadiu a coxia em busca dos padres. Foi um corre-corre geral. Até os “bichinhos alados”, que nos bastidores aguardavam sua vez, bateram em retirada. Minha irmã mais velha, Dolores Agrassar, era a borboleta que não decolou. Algemado, Padre Carlos seguiu para a Delegacia da Praça e Padre Eurico, que não estava lá, só foi preso depois que voltou de suas costumeiras viagens fluviais. Acusados de espionagem, foram conduzidos a Belém para interrogatório. A Casa Paroquial, na 2ª Rua, foi invadida em busca de provas não encontradas e de imaginários transmissores de rádio para contatos com submarinos inimigos que adentrassem a baía do Marajó. Ficava ao lado do FABRIL (hoje Minibox N. Srª de Nazaré), residência da Professora Camila, onde os padres alemães realizavam bailes carnavalescos infantis, nos quais as crianças trajavam fantasias de papel crepom confeccionadas pela mestra. Essas construções ficaram abandonadas durante anos.

Depois de algum tempo, constataram a inocência dos padres. Ah, ia esquecendo! O título da peça era “O Jardim Encantado”, mas o desencanto aconteceu e foi grande. Padre Carlos deixou a batina e mudou-se para o Rio de Janeiro com a bonita morena Celina, filha da Professora Camila. Padre Eurico ganhou novos rumos e o José Pedro se foi com a ditadura de Vargas para nunca mais voltar. Todos voaram para longe como os bichinhos alados do último ato.

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